sexta-feira, 1 de abril de 2011

Parir é correr o risco de ser transformada

Uma das grandes dificuldades que encontro ao escrever sobre parto no blog é: como expor meu ponto de vista, falar daquilo em que meu coração acredita, compartilhar o que dizem as evidências científicas, sem ofender quem pensa diferente? Como defender o direito das mulheres de vivenciarem um parto sem violência sem parecer xiita? E como respeitar mulheres que optam por uma cirurgia ou por um parto medicalizado sem banalizar esses procedimentos?


Recentemente topei com um texto que me pareceu perfeito ao lidar com essas questões, e trago aqui a tradução que fiz dele. Não preciso dizer mais nada.


(Se alguém quiser reproduzir o texto, fique à vontade. Só não esqueça de citar a referência bibliográfica e o nome da tradutora).


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Parir é correr o risco de ser transformada

Isabelle Brabant


Certo dia eu lia um depoimento na internet: uma mulher contava sua experiência de dor escrevia que ela “se rendeu” à anestesia após 32 horas de trabalho de parto. Ela expressava seu sentimento de derrota em relação ao seu desejo de parto natural, ao mesmo tempo em que louvava a intervenção que ela, a princípio, quis evitar. Esse relato me perturbou: pareceu-me ver aí uma triste confusão entre um projeto legítimo de fato e uma decisão legítima de fato, num contexto bem preciso. Quando se está em sua própria história de parto, o objetivo do jogo não é ser contra ou a favor da anestesia. Ela pode vir a ser útil, ou até salvadora, como quando uma mulher em trabalho de parto há 30 horas se sente exausta! Essa anestesia tardia, vinda após horas de caminhada, de esforço, de coragem, não diminiu nada do trabalho extraordinário que essa mulher realizou, e tudo o que ela descobriu ali permanece um tesouro precioso.

Todos os nascimentos são extraordinários, na medida em que têm o poder de nos transformar completamente. Inúmeras mulheres descobriram no parto uma oportunidades de “realização de si”, que elas têm razão de querer compartilhar conosco. Aliás, eu tive o privilégio de assistir a momentos de abertura, de abandono à vida, de instantes mágicos de ternura e emoção que é absolutamente imperativo fazer conhecer. Mas se é bem verdade que ela oferece essa oportunidade extraordinária, a chegada de uma criança é também um evento muito complexo, que agitará mais que uma vida. A criança que nasce “atravessa”, literalmente, sua mãe, vem ao encontro de seu pai, de seus irmãos e irmãs, e essa encruzilhada de caminhos encerra às vezes obstáculos ou mesmo provas. Se essa realidade não é reconhecida, corre-se o risco de alimentar uma certa visão do “parto perfeito”, no qual tudo se desenrola na mais completa harmonia. Se essa imagem idílica se torna um objetivo, se o parto é colocado no domínio do sucesso, então as mulheres estão condenadas a “não conseguirem”, a se sentirem “desqualificadas” por não terem conhecido a apoteose da felicidade que elas se prometeram viver.

O que há de fabuloso num parto é essa oportunidade de viver intensamente alguma coisa, não a garantia de chegar a isso. Tenhamos cuidado ao impor um modelo de parto ou de experiência. Depois de nos livrarmos com grandes esforços do modelo estritamente médico, da “curva de dilatação perfeita”, não criemos uma “curva da realização de si”, que teria por conseqüência dividir as mulheres em dois terrenos: as que tiveram anestesia e as que não tiveram. Mantenhamo-nos afastadas desses ideais de performance. Pouco importa que haja “sucesso” ou “fracasso” sob tal ou tal aspecto da experiência do nascimento. Permaneçamos ligadas ao que aprendemos com essa experiência, àquilo ao qual abrimos a porta em nossa vida, o que nos maravilha, nos toca, o que nos muda.

Não podemos senão ser tocadas pela beleza do que viveram algumas mulheres que escrevem seus relatos de parto natural, que testemunham de sua experiência positiva. Mas tenhamos cuidado para que, aos olhos e aos ouvidos daquela que recebe esse relato e que viveu coisas mais difíceis, isso não soe um pouco idílico demais, excessivamente orientado para o “sucesso” de um sonho que ela mesma não pôde realizar. O que descaracterizaria a ideia inicial: um nascimento, quando temos o coração aberto, é extraordinário, pouco importa como aconteceu.

Quando me lembro do meu primeiro parto, sob muitos pontos de vista, alguém poderia dizer que foi bastante abominável: fui raspada, sofri lavagem... e todo o resto. Achei que essas práticas não faziam nenhum sentido, e em seguida decidi que faria qualquer coisa para que isso mudasse. Mas isso não me impediu de viver um evento absolutamente extraordinário, que me transformou profundamente: o nascimento de minha filha!

Sem querer dizer que não há nada de grave em sofrer uma anestesia ou uma cesariana, sem querer banalizar nada, é importante recolocar as circunstâncias de cada nascimento em seu devido momento. É claro, podemos ter arrependimentos ou decepções. Evidentemente, é benéfico poder expressar esses arrependimentos e decepções. Mas também é necessário ser capaz de ver o potencial transformador que há em cada nascimento, qualquer que seja seu desenrolar. É às vezes um trabalho de luto, de cura, com certeza. Através desse processo, por vezes doloroso, podemos também reencontrar nosso bebê, a acolhida que, na hora do nascimento, não pôde estar à altura dos nossos sonhos, mas que podemos felizmente recriar no vínculo que é tecido no dia-a-dia.

É preciso respeitar o que cada mulher descobre, no ritmo em que ela se descobre, e dar outra vez o valor ao invisível que pertence àquele momento, àquele nascimento. Não é apenas aquilo do qual podemos nos gloriar que conta (sem anestesia ou sem episiotomia...). Ao contrário, o que conta realmente é o que aconteceu no interior de cada pessoa, o que fez sentido pra ela e que vai esclarecê-la na maneira como vai viver com seu filho, o que vai inspirá-la, lhe dar coragem para os dias em que ela precisará. É tudo isso que realmente importa.

De maneira inversa, não é porque uma mulher vive seu parto numa casa de parto ou em casa que ela será grandiosa ou maravilhosa. As mulheres, e muitas vezes os seus companheiros, estão ávidos pelo “parto perfeito” e é normal sonhar com isso. As parteiras também estão ávidas pelo “acompanhamento perfeito”, mas é muito raro que tudo seja “perfeito” ou “ideal”. O que me leva continuamente a me perguntar: qual é o objetivo, exatamente, se não é o de viver algo que, aqui, agora, encontra eco no interior de si, algo que faça sentido? (...)”


Trecho extraído do livro Au Coeur de la Naissance: Témoignages et réflexions sur l'accouchement. (Lysane Grégoire e Stéphanie St-Amant) Tradução: Lia Miranda


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Esta tradução é uma homenagem à Cíntia, pelo seu um ano de mãe da Beatriz. Parabéns, querida!

16 comentários:

Fabiana disse...

Pois é Lia, o texto diz tudo mesmo. Quantas e quantas mulheres da lista de emails que eu participo, que tiveram seus "partos perfeitos" em casa, na água, de cócoras, e etc e depois não dá o peito para o filho pelo tempo que ele queira, e age em benefício próprio, fazendo o desmame noturno precocemente, porque não aguenta mais ficar sem dormir.
Isto já foi amplamente falado e discutido nos blogs por ai afora, mas nunca é demais repetir. E a frase "não é porque uma mulher vive seu parto numa casa de parto ou em casa que ela será grandiosa ou maravilhosa" resume tudo.

bjos

Neda disse...

Não fazes idéia do quanto este texto me ajudou! Ele e o relato da Cintia foram um sopro forte numa chama que parecia se apagar.
Obrigada!

Thaís Rosa disse...

lia, obrigada por compartilhar esse texto conosco.
é simplesmente incrível, e, pena eu - ainda - não ler em francês, pois fiquei interessadíssima em conhecer mais do livro.
por várias vezes aborto um ou outro post justamente em função dessa ridícula contraposição xiitas X sei lá o quê. Mas ler esse texto me fez perceber que é importante, sim, expressar certas experiências de transformação, sem torná-las em modelos, em ideais, em metas de perfeição.
por outro lado, experiências que não sucederam como esperado podem - e devem - ter seu lado de decepção, de "luto" expressadas, mas também devem ser encaradas como oportunidades de transformação intensa da mulher, e valorizadas no que tiveram de positivo, sem escamotear o que foi negativo. Acho que esse é o ponto: nem um lado ser excessivamente idealizado ou valorizado, nem outro lado ser continuamente minimizado ou escamoteado. Pena que é justamente o que mais vemos por aí, talvez eu mesma já tenha incorrido (inconscientemente, em especial no auge do êxtase pós parto) no primeiro erro.
Vou indicar, multiplicar, linkar... AMEI.
beijo grande
thaís

Roteiro Baby disse...

Que texto MA-RA-VI-LHO-SO!

Paloma Varón disse...

Lia, maravilhoso, disse tudo MESMO! Vi o email ontem, mas não consegui ler. Hoje, publicado aqui, li e amei. Perfeito. Talvez seja este o problema do Orgasmic Birth, pode fazer algumas pessoas idealizarem demais o parto, o momento do expulsivo, sei lá, acho que a maior sensação de prazer deve vir depois, ao saber que conseguiu.
Beijos

Cíntia disse...

Sabia Lia, é como se você tivesse chego aqui em casa com uma pequena caixinha de jóias na véspera do aniversário da Bia, no dia que coincidentemente, eu guardei pra falar do parto. Incrível não?
Muito, muito obrigada por traduzir gentilmente e compartilhar com todas. Beijos

Ana disse...

Lindo texto Lia! Obrigada por traduzir.
Tenho uma amiga que idealizou muito o parto natural. Mas após horas de dilatação quase 0 não foi possivel. Ela ficou muito triste, muito frustrada por não ter conseguido. Após 4 anos ainda fala nisso como se alguém tivesse tirado um sonho dela. Não consegue se soltar do "parto perfeito".
Bjs

Pat disse...

Lia,
Eu vivenciei algo semelhante ao que a autora do texto conta: quis um parto natural domiciliar e após 32 horas de TP, com 9 dedos de dilatação tive que ir para o hospital, pois havia mecônio na água da banheira e estavamos sem pediatra. Lá eu pedi a anestesia para poder dormir 10 minutos, estava exausta e só assim conseguiria trazer o Francisco ao mundo.Apesar de ter desejado inicialmente um parto em casa, não me senti frustrada nem um pouco, aliás achei que tudo foi perfeito, pois a riqueza da experiência - 32 horas, ir para o hospital no auge da dor e me render à anestesia sem culpa - me fez descobrir muito a meu respeito e me senti transformada - nada tirou a beleza e a emoção do momento, tampouco me senti menos vitoriosa por isso. E mais, constatei que há muita idealização do que seria o parto perfeito, faço minhas as palavras que ouvi da obstetra: parto perfeito é aquele que acontece para aquela mãe e aquela criança naquele momento.
Beijos
Patricia

Gleice disse...

Adorei o texto!
Olha, eu sou daquelas que ainda estão de "luto" por conta do parto do meu filho...

Infelizmente o parto dele não foi nem de perto o que eu sonhei, esperava e conversava com o GO. A minha frustração não é a de não ter tido um parto normal, mas o de não ter tido opção ou como escolher a forma que meu filho viria ao mundo.

Os motivos foram vários... o médico, a falta de um GO que me apoiasse com relação ao PN e principalmente a família.

O meu bebê, mesmo vindo de uma cesárea, nasceu saudável e ainda é, no entanto a minha cabeça ainda não se desligou dessa questão de não ter tido o tão sonhado PN.

Eu até frequentava certas comunidades de gravidez e criação de filho, mas desisti delas porque elas me faziam sofrer muuiiitooo. Haviam tópicos como: Por que não fazer cesárea? Como conseguir um PN com sucesso, O risco da cesárea... isso me diminuía de tal forma que preferi sair, me desligar.

Nesse mundo xiita do PN a que faz PC é péssima. É ruim!
Só que o nascimento é só o início de todo um processo que as pessoas aparentemente ignoram, aparentemente esquecem que existe.

Criar filhos vai além de pari-los e é aí que a mãe se forma, que a mãe se cria e não na expulsão de um feto.

Felizes as palavras da Lysane e da Stéphanie porque acalentam o coração de muitas!

Abraços.

Cíntia disse...

Lia, só pra dizer: não sei porque, mas eu leio o texto e choro. Absolutamente, tocante! Bj

Anônimo disse...

extraordinário!
mandas pro blog das mamíferas :)

Patricia Cerqueira disse...

Lia,
Tradução linda! Belo texto. Um parto, não importa como a criança saiu, é uma experiência tão marcante que todas as mães lembram dos detalhes 40, 50 anos depois.
beijos,
Patricia
www.comerparacrescer.com

Nine disse...

Texto maravilhoso, Lia!
Faz tempinho que acompanho seu blog (desde o ano passado), mas nunca havia conseguido comentar porque o formulário de comentários incorporado dá erro nas minhas versões do IE e do Firefox. É um problema recorrente e sem solução, segundo me informaram no fórum do blogger. A única solução é pedir ao autor (no caso você :)) para que ele altere a configuração para janela pop up ou página inteira. Se vc puder mudar, agradeço de coração!

Hj estou comentando de uma lan house!
Beijos,
Nine
www.minhapequenaisis.blogspot.com
www.nafronteirasul.blogspot.com

Sarah disse...

Maravilhoso texto!! Adorei a parte "Ao contrário, o que conta realmente é o que aconteceu no interior de cada pessoa, o que fez sentido pra ela e que vai esclarecê-la na maneira como vai viver com seu filho". Sensacional.
Ah, e não sei nada de francês, mas adorei sua tradução! Sou tradutora também, mas de inglês. :P
bjocas

Nine disse...

Oi Lia, obrigada por responder! Mas não precisa se preocupar não, é só vc ir em configurações e mudar a configuração dos comentários, não tem erro. Obrigada tá?
Beijos,
Nine

Andréa Peixoto disse...

Ao ler esse texto, senti-me, a própria autora. Simplesmente, perfeito.

Parabéns pela tradução.


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