terça-feira, 16 de setembro de 2014

Einstein não fazia prova sábado

Sempre me antecipo. Gosto de conversar com adolescentes, porque logo (10 anos não são nada quando se tem filhos) minhas filhas serão adolescentes também. Outro dia peguei de conversa a filha de uma amiga. Está no segundo ano do ensino médio e faz prova todos os sábados.

- Quer dizer, tia. Quase todo sábado. No fim do período – ela me explicou: agora são cinco períodos de um mês e pouco, em vez dos quatro bimestres do meu tempo –, no fim do período a gente tem um sábado de folga.
- E pra quê isso, Mari?

- Ué, tia. É porque eles não querem cancelar a aula pra ter prova durante a semana.
- Mas pra quê tanta prova?

- É porque são cinco avaliações por ano. E são muitas matérias.
- Mas não dá pra colocar tudo num sábado só por mês?

- Não tia! A gente só consegue fazer três provas de cada vez.
- Sinceramente, Mari... você acha que precisa disso?

- Não, tia. Não precisa.

Mariana é boa aluna, alegre, responsável. Vai à igreja todos os domingos de manhã, de modo que não tem uma manhã sequer livre para, sei lá, ir ao clube, dormir até mais tarde, tomar a fresca.

Quando cursei o ensino médio, minhas aulas começavam às 7h15 e iam até 12h45. Agora eles entram às 7h e saem às 13h, com a diferença que têm dois intervalos de 15min em vez de um só. De todos os modos, o período diário cresceu em 15min. “Isso quando não tem o sétimo horário, tia!”. Todas as semanas eles têm um dia com horário estendido.

Fico me perguntando qual o objetivo de tudo isso. Einstein não fazia prova sábado. Einstein não estudava em escola bilíngue. Einstein não foi alfabetizado aos 4 anos de idade.
Quais os resultado de uma carga horária de estudos sempre crescente? Os jovens estão ficando mais inteligentes? Mais humanos? Mais preparados para lidar com os problemas sociais que vão estourar nas suas mãos? Aptos a desenvolverem mecanismos para a sustentabilidade do planeta? Para que tenhamos água daqui a 20 anos? Aptos a construírem um país menos desigual, menos violento, menos injusto?

Nada me convence de que essa corrida escolar não é senão um estapeamento coletivo pra ver quem chega primeiro. Seu filho tem te estudar na escola X, com a maior carga horária da cidade, para não ficar pra trás. Para ter um emprego melhor, para ter sucesso pessoal, para ter dinheiro. Não existe qualquer preocupação com a coletividade, com o jovem enquanto um servidor social, um colaborador ativo na construção de uma sociedade livre, pacífica e justa.
Fazer prova todo sábado serve somente (se é que serve) a mim, enquanto adversário do outro. Quem estudar mais, passa.

É urgente questionar, mais uma vez, nosso sistema escolar. É urgente visitarmos a nós mesmos e sondarmos as motivações que nos levam a escolher esta ou aquela atividade para os nossos filhos. Não digo que haja opções; nem sempre as há. E pode ser que, daqui a dez anos, minhas filhas estejam todas fazendo prova aos sábados. Mas que eu não desista de ensinar a elas, todos os dias, que não estamos aqui para nós mesmos, e que não somos ninguém senão na nossa relação com o outro.

Isso nunca é cedo pra ensinar.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Discutindo a formação de leitores: onde estão as mães?

Estudando para minha dissertação, estive analisando a última edição da pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro. O dado que mais me chamou a atenção foi que, pela primeira vez, as mães deixaram de ser a figura mais influente nos hábitos de leitura dos indivíduos, tendo sido superadas pelos professores.

Não se aprende mais a ler em casa. Ler, não no sentido de ser alfabetizado, de decifrar uma sequência de códigos gráficos; mas de tornar-se leitor, leitor de literatura, da "arte das palavras", como define Ana Maria Machado.

Quando saem da escola, conclui a pesquisa, os jovens param de ler. Ou passam a ler muito menos, sobretudo quando falamos em literatura. Sobrevive apenas a leitura de jornais, revistas e internet. Quando não tem ninguém mais mandando ler, não se lê mais.

Interessante que, mesmo com essa conclusão, a maior parte dos especialistas que comentam a pesquisa menciona que seus resultados são muito importantes para conduzir políticas públicas e para auxiliar professores e gestores de escolas a delinear projetos para a penetração da leitura do Brasil. E as mães, onde estão?

Claro, se olharmos para o país pelo nível macro, veremos todas as questões decorrentes do desequilíbrio de renda e da precariedade econômica de muitas famílias. Mães que trabalham fora o dia todo, que estão cada vez menos em contato com as crianças e que têm pouca relação com os livros.

Mas parece que as mães não têm nada a ver com isso. Que são apenas uma vítima do sistema. E que, portanto, não são um caminho relevante para que enfrentemos o problema do baixo número de leitores no Brasil. É claro que existem iniciativas nesse sentido, como o programa "Mãe, lê pra mim", que distribuiu em São Paulo 4 mil livros para mães em comunidades carentes. E nós, mães blogueiras, também conhecemos o programa do Itaú Cultural que tem distribuído há alguns anos livros infantis para qualquer um que se cadastrar.

Mas penso que seja a hora de convocar as mães a fazerem algo por seus filhos, por suas famílias, sem esperar que o Governo ou a escola façam por ela. Porque estamos incorporando a ideia de que o papel de criar nas crianças o "hábito" da leitura é da escola. E não é. É meu. É da mãe, é do pai, é da vó, é da família. Não faltam livros; as bibliotecas públicas estão nos municípios mais remotos, o acervo do PNBE é absolutamente espetacular. Faltam mediadores que tenham gosto pelo livro.

O comediante Louis C.K., na série Louie, faz uma piada aparentemente de péssimo gosto em uma reunião de pais e mestres em que se discute uma crise na escola, e o que fazer para melhorar a instituição. Ele não entende o rebuliço e comenta: "School is supposed to suck". Claro, uma afronta a todos os pais e educadores que têm lutado por um ambiente escolar prazeroso, criativo e livre para nossas crianças.

Mas a piada traz algo de importante para nossa reflexão: queiramos ou não, a escola está historicamente associada à obrigação, ao dever, enquanto que o lar dá a ideia de prazer, de liberdade, de lazer. Por menos tradicional que seja a escola, ali os deveres são mais frequentes que em casa. Por mais que se goste da escola, existem horários, existem obrigações, existe um esforço maior do que o que é exigido no seio da família. E aí está o pulo do gato.

Embora a escola tenha um papel importantíssimo em cultivar o hábito da leitura, é muito mais difícil para ela desenvolver o gosto pela leitura que para uma mãe. A leitura no colo, com atenção individual que os professores dificilmente podem dar, com tempo para a contemplação, para a pausa, para a repetição, encontra ambiente muito mais favorável em casa.

Mas é necessário que a mãe esteja lá. Que haja tempo, muito tempo. E se isso é uma questão social, política, econômica, também é uma questão individual, das minhas decisões, da minha vontade, do que estou disposta a abrir mão para estar com meus filhos. E se para a população carente o buraco é mais embaixo, eu não tenho desculpa.

A leitura de livros em papel me parece uma tradição que está se perdendo. Embora estejamos falando da palavra escrita, a leitura começa como parte da tradição oral, da contação de histórias, da leitura em voz alta antes de dormir. É algo que tem de ser passado de geração em geração, no seio da família.

Essa tarefa tem sido delegada para a escola, que tem se mostrado incapaz de fazer resistência aos apelos mercadológicos das propostas passivas de estímulo aos alunos, menos desafiadoras e mais aquietadoras das numerosas crianças em sala de aula. É necessário trazer a leitura também para fora da escola, como parte da rotina de lazer, do tempo livre. É necessário resgatar o prazer da leitura compartilhada, humana, o lado relacional da leitura.

Só aí se criarão memórias afetivas fortes o suficientes para sustentar a leitura individual, silenciosa, contemplativa, sem hipertextos, botões ou luzes.



quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Ela vai dormir fora

Uma mala pequena e jeitosa, com uma fita cor-de-rosa atada à alça. Embalo em sacos transparentes os conjuntos de roupas que ela mesma escolheu. As roupas de frio tiveram de ir em outros sacos, maiores, todos cor-de-rosa. Ela vai saber, as roupas de frio nos sacos rosas. Tudo identificado com marcador permanente.

Todos os anos, a igreja promove um "acampadentro" para as crianças a partir de cinco anos. Chegam sexta à noite e ficam até domingo de manhã, duas noites amontoados em colchões no chão, dormindo tarde, comendo cachorro-quente e crescendo na fé. Cinco anos, só ano que vem. Mas achei que Emília poderia aproveitar a programação diurna.

- Posso trazê-la durante o dia, para ela participar de algumas atividades?
- Não é bom que as crianças fiquem chegando e saindo...

Murchei. Só ano que vem então.

- ...mas você pode inscrevê-la. Ela fica, não fica?

Inscrevê-la? Para dormir e tudo? Mas ela ainda não tem cinco anos...

- Outras crianças da idade dela vão participar também.

Ora, claro que ela fica. Foi só olhar pra ela, que me acompanhava. Os olhos brilhando, o sorriso de orelha a orelha, e a cabeça subindo e descendo, fazendo que sim. Eu disse que ia pensar.

Não precisei de muito tempo para decidir. Mando um feijão para substituir o estrogonofe, o cachorro-quente ela já está acostumada a comer sem a salsicha. E a hora de dormir... bem... domingo ela capota às 19h. Resolvido, ela vai.

Desde então, contagem regressiva. Faltam três dias para o acampadentro! Dois dias! E é amanhã.

Fecho a mala, tão linda, tudo organizado de modo que ela possa se virar - que ela sabe se virar. O potinho com X para xampu, com C para condicionador. Duas toalhas, uma para o chuveiro e outra para o banho de mangueira. Pantufas para não sujar as meias na hora de dormir. E nem precisa de mais recomendações.

Beijo na mamãe e até domingo!

terça-feira, 27 de maio de 2014

Alfabetização precoce: qual o problema?

Esta semana topei com um texto que muito me emocionou, do escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo. Azevedo conta suas primeiras experiências literárias, não com textos escritos, mas com imagens. Eram livros que ele encontrava na estante dos pais e folheava, bebendo daquelas imagens, sem compreender nada daquelas letras, ainda indecifráveis, que acompanhavam as ilustrações.

As imagens ficaram em suas lembranças, indeléveis. Pensando bem, talvez eu também tenha gravadas na memória muito mais lembranças visuais que verbais ou sonoras. Se tento me lembrar de uma frase, um verso de um poema, qualquer coisa textual que me tenha marcado na primeira infância, nada me vem que não tenha sido repetido muitas e muitas vezes ao longo da vida.

Cheiros, lembro também dos cheiros. O cheiro de esgoto e peixe podre que tem Fortaleza. Não tinha quatro anos completos quando saí de lá, mas guardo alguns quadros. A casa e seus espaços, as colunas redondas, as camas de alvenaria pintadas de verde. A vez em que quis tirar uma foto de dentro de um cesto de peixe, e o odor que me fez mudar de ideia assim que entrei.

As palavras, os sotaques, se foram. Talvez acabem aparecendo por aqui, ou revivendo quando trato com minhas filhas.

Ao ler o depoimento de Azevedo, pensei: "ele se lembra tão bem dessas imagens! Quantos anos será que tinha?" Não podia ser uma criança tão pequena, pra guardar uma memória tão viva. Azevedo se lembra de quando ainda não sabia ler.

Então algo estalou em mim. A partir do momento em que lemos as palavras, não lemos mais as imagens da mesma forma. Não precisamos mais adivinhar a história que as ilustrações contam. E não precisamos mais perguntar, buscar o adulto, aquele mediador que torna a leitura afetuosa. Quanto antes a criança lê sozinha, antes ela se liberta da leitura compartilhada. Bastante conveniente num tempo em que tudo o que queremos é que as crianças dispensem nossa assistência o quanto antes.

E pensei que gostaria que minhas filhas se lembrassem dos dias em que eram analfabetas. Que em seu analfabetismo, aprendam a ler as imagens. Que não as vejam apenas como decoração, mas apreendam seu potencial estético e narrativo. Que as imagens ainda emocionem. Ainda contem, ainda provoquem.


E pensei que gostaria que minhas filhas se lembrassem dos dias em que eu lia por elas. Que guardassem em suas células a música da minha voz, o calor do meu colo, o odor da minha respiração.

Elas terão toda a vida para lerem sozinhas os códigos da nossa escrita. Que, por enquanto, sejam ágrafas. E sejam todas sentidos: olhos para fotografar, ouvidos para beber o som, pele para sentir o outro, nariz para aspirar minha voz, e boca para perguntar. 

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