Sempre quando saio de casa para o trabalho dou uma espiada no jornal do vizinho, estendido sobre o capacho. Há muito tempo, talvez anos, não leio jornais. Nem no papel, nem pela internet, tampouco assisto aos noticiários pela TV. Fico sabendo dos acontecimentos pelo boca a boca, e felizmente acabo passando ao largo de muita tragédia e notícia ruim.
Mas o jornal do vizinho está sempre lá, com uma manchete quase sempre mal escrita e sensacionalista e outras chamadas sem importância. Virou hábito, passo por lá, faço minha leitura dinâmica e desço o elevador tecendo críticas mentais, que normalmente já se esvaíram quando chego à garagem.
Mas hoje o que li sobreviveu à viagem de elevador e ficou ali, rendendo minhoquinhas filosóficas. Era uma pequena chamada no canto superior da primeira página do jornal local, que dizia mais ou menos assim: “O amor compensa a ausência. Mães podem trabalhar sem culpa: estudos demonstram que o desenvolvimento das crianças não é prejudicado quando as mães passam o dia fora.” Ao lado, a foto de uma mãe com um bebê de pouco mais de um ano: “Fulana trabalha o dia todo, mas investe na qualidade do tempo que passa com a pequena Júlia.”
Coincidentemente, tinha lido há alguns dias uma entrevista numa revista institucional com uma médica que trabalhava 12h por dia, tinha um filho de dois anos e estava grávida do segundo. A matéria buscava demonstrar como maternidade e carreira são perfeitamente conciliáveis e como todos, mãe e crianças, estavam felizes.
Voltando ao jornal do vizinho. Uma notícia emancipatória: a ciência concluiu que nossos filhos não precisam de nós, já que se desenvolvem muito bem longe das mães (e, supõe-se, também dos pais). E nessa notícia, um valor implícito: o importante para uma criança é se desenvolver adequadamente. Pais satisfeitos, culpa desfeita.
Não li toda a matéria – até por que imagino que o vizinho não ficaria feliz em encontrar seu jornal todo desmontado. Como eu disse, apenas passo os olhos pelos dizeres da primeira página. Mas inferi que esse perfeito desenvolvimento ao qual o repórter se refere diz respeito a aptidões motoras e intelectuais: um bebê que é deixado na creche ou na companhia de uma babá não apresenta atrasos no andar, na fala, na coordenação motora, e disporá de todas as ferramentas para iniciar sua educação formal no mesmo nível que seus coleguinhas que passaram a primeira infância ao lado das mães. Já li, inclusive, algumas notícias que demonstram que crianças cujas mães trabalham fora têm melhor desempenho acadêmico.
Vira e mexe me deparo com alguma coisa que me faz matutar sobre os valores que temos em relação aos nossos filhos. Vejo a descrição nas caixas de brinquedos: “ajuda o bebê a dar seus primeiros passos; estimula o desenvolvimento motor; estimula o tato; estimula a linguagem...” Alguns ainda fazem referência à diversão, mas como um brinde: “aprenda se divertindo!”. Porque só se divertir deve ser mesmo uma perda de tempo. Já vi até lojas de roupas infantis anunciarem que seus produtos estimulam os sentidos das crianças, quando o principal fator na escolha do que uma criança vai vestir deveria ser o conforto.
Com essa mentalidade, uma prova científica de que meu filho não precisa da minha presença para desenvolver todas as aptidões necessárias à sobrevivência num mundo capitalista é realmente libertadora. Enquanto isso, visto meu tailleur e lá vou eu também sobreviver nesse mundo capitalista, sem culpa. Para que depois meus filhos cresçam e sejam bem sucedidos como eu.
Sou uma mãe que trabalha. Com a jornada de 8h diárias, sou forçada a passar 10h longe de casa. É parcialmente uma obrigação, parcialmente uma opção. É algo que já estava assim quando minha filha nasceu e que demanda um pouco de estratégia para ser mudado. Não vou dizer que me sinto culpada. Não sinto culpa simplesmente porque isso não ajuda em nada. Sinto, sim, um desconforto. Porque o meu instinto grita dizendo que isso não está certo.
Não vim aqui discutir se as mães devem ou não trabalhar. Vim me perguntar o que nós queremos para os nossos filhos.
Eu quero, primeiramente, que meus filhos tenham caráter – caráter esse que eu e meu marido vamos ajudar a formar, responsabilidade indelegável para educadores ou cuidadores. Em segundo lugar, quero que meus filhos sejam felizes. Construir a segurança emocional que vai permitir que eles sejam plenos de alegria é outra tarefa exclusivamente nossa. Se eles vão ser ricos, pobres, brilhantes, bem sucedidos, pouco importa. Se tiverem caráter e paz de espírito, saberei que minha missão foi cumprida.
Se alguma mãe precisa de um estudo científico para se livrar da culpa de não passar tempo o suficiente com seus filhos, provavelmente ela não se sente segura o suficiente para manter uma carreira integral. E provavelmente ela está certa.