Há dois dias tenho outra Emília em casa. Pra resumir, vivemos todas as formas do que chamam por aí de birra: ela espalhou livros pelo quarto, arremessou toda sorte de objetos, cuspiu comida, atirou talheres pelo ar, se jogou no chão, chorou, berrou, puxou cabelos, tirou os óculos do pai, tentou me morder... Esses dias seguiram noites mal dormidas, então provavelmente o cansaço influiu na irritação. Mas certamente não foi só isso, porque ela já dormiu pior e não reagiu assim.
O interessante é que os episódios de rebelião não se davam só quando ela era contrariada. Estamos lá nós duas lendo um livrinho, felizes e alegres, quando ela se levanta, atira o livro no chão e olha pra mim com aquela cara: “Você não vai brigar comigo?”. Diante da minha não-reação, ela pega outro livro da estante e repete o gesto. Limito-me a perguntar: “Emilinha, está tudo bem? Por que você está jogando os livros?” Ela continua. Levanto. “Meu amor, vamos guardar os livrinhos?”. Ela foge gritando. Tento conversar, ela me rejeita, não quer que eu a toque. Então eu deixo que ela se acalme e vou guardar os livros. Ela se joga no chão, chorando.
Mais uma vez espero que ela se acalme, até aceitar minha presença. Ela aceita o colo, eu converso com ela. Pergunto se tem alguma coisa errada, se está tudo bem na escolinha. E pergunto se ela está chateada por causa do neném. “Neném!”, ela diz, e corre pra pegar o Chiquinho (boneco). Ela abraça o Chiquinho, beija, pega o berço, coloca o Chiquinho pra dormir. Tudo na mais perfeita paz. Então, do nada, ela joga o Chiquinho no chão. Já antevendo todo o fuzuê dos livros novamente, e percebendo que ela vai arremessar também o berço (que é de madeira, pesado), recolho rapidamente os brinquedos e coloco tudo fora do alcance dela. “Não, não!!”, ela protesta. “Mamão. Você quer mamão? Está com fome?” Como o mamão é a nova banana, ela aceita. Começa comendo linda, sossego. Daí cospe o mamão e joga na mesa. Vejo a mão balançando pra atirar a colher a metros de distância. Imediatamente o prato, a colher, o mamão, tudo some da frente dela. Sem tempo pra maiores estresses.
Decido que ela PRECISA dormir (proposta que, aliás, já havia feito várias vezes). “Meu amor, vamos passear lá embaixo. Você está muito nervosa”. Mais nãos, lágrimas, e eu a amarro no carrinho. Ela vai berrando até o elevador chegar ao térreo. Quando vê a rua, ela se acalma. Passeamos e em uns 20 minutos ela dorme.
Ela dormiu umas 2h – surpreendente pra quem já tinha cochilado na creche. Mas acordou igualmente indisposta. Me chamou, mas não queria sair da cama, não queria que eu encostasse nela, mas não queria que eu saísse de perto. Lá fiquei, ao lado dela, esperando. Esperei uns 20 minutos ou mais, só observando. Chorei um pouco, sentimentalismos de grávida. Eu sabia que ela estava sofrendo. Cantei algumas músicas, ela aceitou, sem pedir que eu me calasse. Foi se acalmando, e depois foi jantar numa boa. O pai chegou e ela já estava bem mais tranquila.
Nesses dois dias, que foram os mais difíceis em termos de comportamento que já tivemos até hoje, eu poderia ter surtado. Poderia ter reclamado, brigado, gritado, me desesperado. Poderia ter ficado exausta. Mas não fiquei. Dizem que a virtude mais necessária pra criar filhos é a paciência. Pois em vez de paciência, eu diria que é preciso ter calma. Porque a paciência pressupõe a necessidade de auto-controle; ela dá a ideia de que você está simplesmente se segurando para não explodir. Já na calma, não há nenhuma bomba com pavio aceso. A gente não sofre. A gente espera, a gente aceita, a gente busca compreender. E nossa resposta física é totalmente diferente.
Diante dessa nova situação, tratei Emília como eu gostaria de ser tratada no lugar dela – considerando sua maturidade e sua situação emocional. Meu objetivo número um ao interferir numa “birra” (não gosto de chamar assim) não é ensiná-la a não fazer mais isso. Não é eliminar o sintoma. Meu primeiro objetivo é criar um cenário favorável para que a irritação passe e, em seguida, compreender por que ela se comportou daquela forma. Nem sempre vou entender todas as razões, mas não posso deixar passar essas oportunidades de me comunicar com minha filha. Se é justamente aí que ela está tentando me dizer algo...
Ela já está bem melhor. Hoje o dia foi muito agradável. Ela aceitou todas as negativas que eu tinha de dar a ela (por exemplo, trocar o garfo dela – de sobremesa – com o meu – de adulto; comer iogurte depois do feijão) e também o que ela não queria fazer (parar de brincar para trocar a fralda ou tomar banho). Claro que ela reclama um pouco, mas depois segue numa boa.
Alguém poderia dizer que estou criando uma marginal, sem disciplina. Pois eu acho que não. Ela sabe muito bem o que a mamãe aprova e o que a mamãe desaprova. E sei que ela nos ama, com o amor primitivo e inocente dela, e sempre procura nos agradar. Mas ela é um ser humano, com angústias, medos e frustrações. E ela não sabe dizer: “Mamãe, preciso falar com você. Senti que esse neném está chegando, e estou com medo de ficar sozinha. Estou muito feliz, vai ser muito legar ter alguém pra brincar. Mas eu gosto muito de você e do papai e me disseram que vocês vão ter menos tempo pra mim. É verdade que eu vou ser deixada de lado?”.
E em vez de bater de frente com a birra, eu a abraço como uma oportunidade de entender melhor minha filha. Optei por não brigar. Decidi que minha casa não será um campo de batalha. E que a paz reine neste lar.
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Ela pode estar abatida
Meninas ficam abatidas
(...)
Mas quando ela ficar abatida
Tente um pouco de ternura.
Você sabe que ela está esperando
Ansiando
Por aquilo que ela nunca vai ter
Mas enquanto ela está ali, esperando,
Tente um pouco de ternura.
É tudo o que você precisa fazer.
Não é só sentimental
Mas ela tem seus sofrimentos e preocupações
Mas palavras suaves, ditas com delicadeza
Fazem mais fácil suportar
(…)
Você deve abraçá-la
Apertá-la
Nunca deixá-la
Agora, vá até ela,
Tente um pouco de ternura.
(Try a little tenderness, Otis Redding. Tradução livre minha).