Os dois elementos vitais para o organismo humano são glicose e oxigênio. Dentro do útero, o feto não come e não respira - a mãe faz isso por ele. Ele nasce e continua sendo nutrido pela mãe, não mais pela placenta, mas pelo seio. Contudo, a primeira separação é inevitável: ele tem de respirar. Sozinho.
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Segunda-feira à noite. Margarida vem de alguns dias com sintomas de gripe, provavelmente adquirida da irmã. Mas como parecia estar melhorando, nos limitamos a manter a limpeza do nariz em casa e tentar contatar por telefone o pediatra, que viajou, cancelou a consulta que era pra ter sido no fim de semana e remarcou-a para a terça-feira seguinte. Achamos que daria pra esperar.
Mas, na segunda à noite, o incômodo dela, a tosse, a respiração chiada, começam a me incomodar demais. E, pela primeira vez, seu corpinho esquenta e acende o alarme. Peço pro marido contatar o pediatra substituto. Descrevemos os sintomas e ele recomenda o pronto-socorro.
Em poucas horas, estamos instalados na UTI pediátrica. Minha bebê de seis meses com quatro fios/tubos conectados a ela: eletrodos, acesso venoso, oxímetro e oxigênio. As bombinhas do pronto-socorro não foram suficientes para limpar totalmente o pulmão e garantir uma respiração autônoma. Bronquiolite, me dizem que se chama. Pneumonia, felizmente, não.
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O coração pequeno, o rosto molhado e um pensamento: queria ligá-la novamente à placenta e respirar por ela.
Mas o seio ainda está aqui. E nele ela seguiu grudada até a UTI, para espanto de todos.
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Foram três dias de UTI e mais dois no quarto. Finalmente, estamos em casa. Feliz por ter reunido novamente minha família, que ficou quase uma semana partida ao meio. Cansada, exausta, eu diria, mas com a necessidade de contar.
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Contar.
Do abraço que recebi de uma amiga, pediatra intensivista, numa noite de solidão. Há tão pouco tempo havíamos começado a nos relacionar e ela soube aparecer no momento em que eu mais precisava, como se me conhecesse há séculos, como se tivesse ouvido um chamado sem voz.
Na UTI pediátrica só é permitido um acompanhante, e como eu sou o alimento de Margarida, tive de dormir lá todas as noites, com os apitos dos monitores, as luzes acesas (UTI jamais fica no escuro), o choro chiado dos outros bebês. E comecei a pirar. Ouvir apitos nos sonhos. Margarida, irritadíssima com tanta luz e barulho, incomodada com o acesso venoso, estressada.
E eu chorando, me sentindo totalmente abandonada, quando chega uma médica com um jaleco de outro hospital procurando pela filhinha de uma amiga. Como um bálsamo ela chegou.
Contar do acolhimento da família, das horas sofridas, mas deliciosas, ao lado da minha cunhada e meu sobrinho, que moram ao lado do hospital e abriram a casa para eu tomar banho, dormir e comer.
Do amor por crianças e pais desconhecidos, que dividiam a sala caótica com Margarida, separados apenas por cortinas. O bebê prematuro que já tinha 10 meses mas ainda não respirava adequadamente, e estava na UTI desde janeiro. O bebê que teve bronquiolite com apenas um mês e precisou ser entubado. E o menino de quase três anos, Down, que teve um colapso no intestino e teve de passar por duas cirurgias em 24h. E os pais, os avós, a noite toda velando por essas crianças.
E do peito. O peito, que aparece repetidas vezes no relatório médico: "criança foi internada mamando no seio materno"; "criança mamando em livre demanda"; "criança mamando com mais frequência". Como um sinalizador de vida.
Me disseram que muitas crianças com bronquilite são proibidas de mamar devido ao estresse sobre o pulmão. O bebê fica cansado, ofegante. Mas deixaram Margarida mamar. Deram um voto de confiança àquele bebê gigante.
Muito mais teria de contar. Da tarde deliciosa de ontem, com minhas duas pintinhas reunidas no quarto da pediatria, Emília cantando e batendo palmas e Margarida brincando sentada sem apoio, como se nunca tivesse sido internada. Das saudades de Emília e do aperto que senti quando a vi bem mais magra. Das crises que ainda estamos vivendo, porque Margarida ainda está sobressaltada depois de tanto estresse e Emília passando por uma saudade confusa. Das milhões de outras crises que atingiram nossa família nos últimos meses.
Mas conto apenas da Graça. A mesma Graça que trouxe Margarida ao mundo.
Sua ira dura um momento; seu favor a vida inteira; de tarde vem o pranto, de manhã gritos de alegria.
Sl 30:5
Deus seja louvado.