quarta-feira, 20 de junho de 2012

Mentiras obstétricas

A revista, depois de citar algum médico do Conselho Regional de Medicina de São Paulo condenando o parto domiciliar, além de certo "estudo" que já foi derrubado por pesquisas científicas sérias, exibe fotos das melhores suítes de parto do estado e deixa a seguinte lição nas entrelinhas: "Mãezinha: você pode ter um lindo parto humanizado num hospital. Então deixe dessa frescura de querer parir em casa e entregue seu corpo pra quem entende do assunto, ok?".

Depois, o canal de televisão faz uma matéria menos tendenciosa, com o mérito de entrevistar profissionais de saúde qualificados, entre eles o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Jorge Kuhn. Mas deixa a mesma lição: o hospital oferece todas as condições para um parto natural. Parto em casa é capricho.

Daí alguém começa a te questionar: "Por que você pariu em casa? É perigoso..." E você explica que os riscos são idênticos (ou menores) aos de um parto hospitalar de baixo risco, e que isso é corroborado pelas melhores evidências científicas. Mas, como diz aquele programa dominical, "recentemente uma mulher morreu na Austrália após um parto domiciliar..." Você pode refutar: "Sério? Pois eu sei de um caso aqui mesmo na cidade, no hospital X, de uma mulher que morreu após uma cesárea eletiva. E sei de outra que ficou vegetativa após receber uma medicação para dor durante o trabalho de parto." E pode dizer, ainda: "Pessoas morrem. A mortalidade materna e neonatal no hospital não é zero, sabiam?" Mas, não. Eu me baseio na minha experiência pessoal, e as evidências científicas que se danem.

Aqui em Brasília existe uma grande avenida, sem semáforos, chamada popularmente de Eixão. Velocidade máxima: 80km/h. Atravessar o Eixão por cima é perigoso, é melhor usar os túneis. Mas tem gente que se recusa: "Esses túneis são um horror... já pensou se eu for assaltada lá dentro? Eu atravesso o Eixão por cima todo dia e nunca fui atropelada." Daí você sabe de alguém que foi atropelado andando na calçada e conclui que andar na calçada é tão perigoso quanto atravessar o Eixão.

Os estudos que concluem pela segurança do parto em casa não se baseiam em clippings de jornais e revistas - ao contrário da opinião pública. Eles se baseiam em uma quantidade significativa (milhares) de nascimentos planejados para acontecerem em casa, com assistência qualificada, e os comparam a nascimentos de baixo risco planejados para acontecerem no hospital. Óbvio que se você morrer atropelado enquanto estiver andando na calçada, isso vai virar notícia. Mas isso não é ciência.

E aí vem a primeira mentira. Parir no hospital é seguro, parir em casa é perigoso. Não sou eu que vou tentar convencer ninguém. Quem quiser pensar, pode começar lendo este artigo. A médica que o escreveu, Dra. Melania Amorim, tem nada menos que dois pós-doutorados (um pela Unicamp e um pela OMS). O parto em casa tem riscos, assim como o parto hospitalar. Não se iluda achando que, agendando uma cesárea, seu bebê ou você jamais vão morrer ou ter alguma sequela.

A segunda mentira é que qualquer pessoa pode ter um parto humanizado no hospital. Para começar, são poucas as cidades que dispõem de maternidades com estrutura adequada para um parto humanizado - quarto PPP (pré-parto, parto e pós-parto), cama apropriada, larga e com a cabeceira reclinável, banheira etc. E quando tem, vira e mexe aparece uma enfermeira chamando a mulher de "mãezinha" ou mandando fazer força de cocô. É frescura eu não querer ir pro hospital porque lá me chamam de mãezinha? Não é não, senhores repórteres. Não é não, conselhos de medicina. Se vocês fossem lá nas evidências científicas, saberiam que uma fêmea precisa de sossego para parir, e qualquer interferência pode gerar complicações e tornar o processo do parto mais difícil e longo - e, portanto, perigoso.

Outra mentira é que, se a cesárea foi necessária, que bom que eu estava no hospital. Considerando nossos índices de cesarianas, é óbvio que a maioria esmagadora delas está sendo feita sem indicação clínica. Mas existem aquelas - por sofrimento fetal, por exemplo - que se tornam necessárias devido à má assistência ao parto. Internações precoces, maus tratos com a parturiente, ambiente inadequado. Tudo isso pode fazer o bebezinho ter medo de sair. E você, ter medo de deixá-lo sair. Isso não é fantasia. É ciência. O vilão se chama adrenalina. E vá olhar: das mulheres que planejam ter seus filhos em casa, pouco mais de 10% têm de ser submetidas à cesárea - taxa recomendada pela OMS. Essas sim, maravilhosas e salvadoras. Mas por que será que 90% dessas mulheres conseguem parir?

Eu poderia falar de muitas outras mentiras. Mas a verdade dói. A verdade é que mulheres grávidas e em trabalho de parto não precisam de médicos senão para vigiá-las, e intervir apenas em caso de necessidade. A verdade é que o hospital só é necessário em caso de intercorrências e que, sim: dá tempo de transferir. Talvez algum bebê (um em mil) ou mãe (uma em cinco mil) que não teria morrido no hospital morra em casa. Mas vários bebês e mães que morreram no hospital poderiam estar vivos se tivessem tido um parto domiciliar bem assistido. Mas como gostam de jogar pedra na Geni...

A verdade é que os conselhos de medicina não estão protegendo nem mulheres, nem bebês. A verdade é que não existe, do ponto de vista da segurança, nada que justifique que sejamos privadas do direito de escolher.

Pelo direito à escolha do local de parto e pela assistência obstétrica baseada em evidências.

14 comentários:

Neda disse...

Lia, a verdade é que nenhuma maternidade, nem a melhor do mundo, vai ser igual a casa da gente. Meus partos foram em hospital, um desrespeitado, outro respeitado, e tudo o que eu mais queria era estar na minha casa, com o mais velho, na minha cama, com privacidade. Nada de entrarem de madrugada e acenderem a luz para ver como estávamos (obvio que dormindo!).
A ida do parto para os hospitais teve seu mérito e salvou muitas vidas em tempos de pouca ou nenhum higiene e falta de saneamento básico e água tratada, mas hoje, parir em casa (gravidez de baixo risco) é tão seguro quanto no hospital. Todos lembram da australiana que morreu depois de um parto domiciliar, mas aqui ninguém fala da mãe do Sean Goldman que morreu no hospital, nas mãos de um bambambam, por comprovada negligencia (o CREMERJ fez publica a advertência, o que já é muito).

BEIJOS

Marília Sampaio disse...

Muito bom Lia!
Como sempre, muito esclarecedor seu post.
Consegui um parto humanizado hospitalar aqui em Brasília. No Daher, você deve saber do quarto de lá. Mas infelizmente, de 2010 (quando pari) pra cá, o preço mais que triplicou.
Fora a médica. Ou seja, se você quiser um parto humanizado tem que ter grana.
Eu queria mesmo era um parto domiciliar, mas não tinha nenhum médico disponivel (afinal, a minha GO só desistiu de me assistir aos 38 semanas. Vaca! ).
enfim, parto humanizado não é direito é poder de compra.

Já pensou nisso? Que as mulheres pobres não podem parir naturalmente e dignamente (parto normal no SUS é uma enxurrada de violência obstetrica, todos sabemos) e nem sequer escolher uma cesariana (prova de que cesárea também não é opção!). Ou seja, ainda somos a elite da elite e é por isso que temos que lutar cada dia mais por essa bandeira. PARIR É DIREITO. ESCOLHER O LOCAL DE PARTO É DIREITO.

Priscilla Perlatti disse...

Como sempre, informativa, lúcida, excelente!
Pelo direito à informação!

Bjs

Priscilla

Anne disse...

Lia, eu tenho recebido comentários que dizem: a medicalização dos partos diminuiu em 1000% as taxas de mortalidade materna.
Falta mesmo é vontade do povo de encarar que é marionete. Eles acreditam em qualquer coisa que ouvem. O médico do Cremesp na matéria do Fantástico: não podemos correr nenhum risco. Não podemos correr meio risco!!!
Olha isso?

Que medo de riscos, né? É a cultura do pavor!!!!!
Bjo
#idola

Cíntia disse...

Ai que saudade dos seus textos! Voltei hoje de viagem e que bom ler você. Parabéns pela reflexão.
beijos

Sarah disse...

Ótimo texto Lia! Muito claro e informativo. Amei a frase em negrito no final. Assino com vc!
bjos

Taiza disse...

clap clap clap!!!

Excelente texto, Lia!

Não só pela relevância das informações (todas verídicas e comprovadas cientificamente) mas pela parte do "a verdade dói", pois no nosso país falta isso: enxergar a verdade de frente, enxergar que ninguém é +mãe/-mãe (esse mimimi que sempre escutamos por aí) e sim, que somos TODAS vítimas do sistema, até aquelas que tem lindos Partos Domiciliares também são vítimas, pois têm que pagar caro por isso, que deveria ser direito de todas e acessível à todas!

Beijo grande!

Flávia disse...

Como sempre fez um post incrivel Lia. Por isso que esse blog não pode sair do ar...
bj

Ana Júlia disse...

Muito bem dito!

Está na hora de os médicos pararem de pensar só na própria conveniência.

Ah, já morei em Brasília, e sempre usava o subterrâneo para atravessar o Eixão. Era sinistro, principalmente às seis da manhã.

Beijos.

Ana Paula - Journal de Béatrice disse...

Lia, como sempre, impecable ;)

Sabe, vamos tricotar um pouco aqui. Lembra que um dia comentei que a minha cunhada estava planejando ter um bebê e pedi algumas dicas para você do hospital que Emilia nasceu, etc.? Ainda tive com ela algumas conversas sobre doulas, preparo psicologico durante os nove meses (grupos de apoio), além de ter indicado seu blog para ler...

Pois bem. Ela esta gravida e a previsão é para agosto. Ja sabe que sua bebê nascera na 38 semana. Sera agendado, por escolha propria. Ela teve um parto normal traumatico, com todas as aberrações que você possa imaginar: ausência do marido durante o trabalho de parto, o "maezinha", o "engole esse choro", abandono sob uma maca, episiotomia.

Ela fechou os olhos para qualquer tipo de informação e deve estar alheia a toda e qualquer discussão que (felizmente) esta havendo agora, nesse momento, ai no Brasil.

E o pior Lia, é que eu não me sinto confortavel em aconselha-la, pois eu sou a "radical" e a que tomou uma peridural para suportar a dor (ela foi no peito e na raça).
E é triste. Triste porque sei da verdade de cada linha que você escreveu. Sinto por ela não ter a menor vontade de viver uma outra historia de parto, mais respeitosa. Sei (e ela esta cega por conveniência) de todos os riscos decorrentes de uma cirurgia de grande porte como é a cesarea.

Eh uma pena que ela, assim como outras mães bem instruidas fechem os olhos para a verdade. Vai ver a verdade realemente doi.

Lia, querida, queria agradecer o comentario que você deixou no Journal. Realmente espero, no tempo oportuno, contar com todo apoio de Nathalie, a anjo-sage-femme. Esse nosso segundo encontro mostrou o quanto ela é especial para mim.

Beijão!!!

Thaís Rosa disse...

querida,
mais um belo post, pra ser indicado pra todas as mulheres que se permitem buscar mais.
o conceito de "segurança" no parto é muito ambíguo, não? ando pensando em escrever sobre isso, mas talvez você o faça melhor... que tal?
mas e o desmame, tudo fluindo?
saudade!
beijoca
tha

Ilana disse...

Ótimo texto, Lia!
Concordo 100% com você. Não há partos sem riscos.
Mas essa ignorância toda me irrita a um ponto, que estou me calando, olha só que coisa. O próximo parto se aproxima, eu sei que é cedo (31 semanas) mas o bebê continua pélvico, e isso vai virando um fantasma e um estresse que não tem o menor sentido...
Principalmente porque de médico a gente pode até mudar, mas de família (e marido!) não.
E assim vou indo. Pesquisando, lendo, me informando, e calando. Chega a ser triste de tão solitário que tem sido esse processo.
Gosto muito da forma esclarecida com que você articula as ideias.
Bjos

Ilana disse...

Que Deus e o Baby te ouçam, Lia!
O nome do Dr. Jorge Kuhn foi justamente o citado pela minha GO, quando disse que não faria parto pélvico, mas o indicaria se eu quisesse.
A questão é que EU não quero parto pélvico. Ando pensando muito no que quero para o parto, lendo em diversos lugares, falando em análise. E pra mim, nesse momento, o "ideal" seria um parto normal com analgesia tardia, e sem ocitocina, episio e todo o pacote.
Também ando me informando sobre como ajudá-lo a virar. Semana que vem tenho consulta e vou perguntar quando posso começar a acupuntura, homeopatia, exercícios, luz na base da barriga... E por último, tentaria também a versão externa. Isso se eu conseguir convencer meu marido, que não quis nem ouvir falar, achou uma loucura e acha que cesárea é a coisa mais simples do planeta. (Lógico, não é a barriga dele que será aberta...)
Eu sei que é cedo, mas eu realmente gostaria que ele virasse não só pelo parto, mas também porque está ficando difícil levar a gestação assim. Ando cansada demais, com uma azia infindável da cabecinha dele pressionando meu estômago. E cuidando do mais velho, passo metade do dia dobrada pra baixo, o que só piora. Acho uma pena, porque amo estar grávida, considero um momento incrível e iluminado da vida, e não estou conseguindo curtir como gostaria.
Enfim, se souber de mais alguma dica, sou toda ouvidos! rsrs
E desculpa usar esse espaço de comentários pra responder, nem precisa aprovar nem nada, mas não achei outra forma de te contatar.
Beijo e obrigada pelo carinho!

Dani Garbellini disse...

Lia, não pude ler este texto quando publicou e deixei marcado. E hoje finalmente eu li. E ainda bem que li. Está perfeito!
Vontade de sair enfiando ele na cabeça das pessoas. hehehe
Definitivamente, os conselhos de medicina não querem proteger mulheres ou bebê, o interesse é proteger a categoria, no pior sentido da palavra, proteger no ganho, no lucro, na reserva de mercado, no corporativismo.
Hoje tomei banho pensando: se cesáreas são mais arriscadas que parto normal (e isso nem eles conseguem negar), cada cesárea desnecessária, especialmente as eletivas, é aumentar o risco. E elas são muitas, muitas mais que o parto domiciliar, então, cadê os conselhos desrrecomendando as cesáreas desnecessárias e pegando no pé dos doutores que as praticam?
Para mim parece tudo tão óbvio, que não consigo entender o que acontece. Devo ser fora da curva mesmo.
Beijos!


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