Terceiro período
Depois que a cabeça sai, o resto é fichinha. Até aquele corpão gorducho escorrega com facilidade. Aliás, eu não senti aquele círculo de fogo, aquela ardência do coroamento. Senti arder o períneo quando a cabeça começou a sair, mas foi só. Acho que era tanta adrenalina que eu me auto-anestesiei.
Ali estava eu, no momento mais precioso do parto, que dura uma fração de segundos e do qual a gente sente saudades pra sempre. Pegar minha filha, levá-la ao colo, sentir o calor do seu corpo pela primeira vez. Margarida nasceu ótima, corada, respirou logo e não precisou de aspiração ou qualquer outro procedimento para ajudá-la a entrar no mundo. Ofereci o seio, mas ela não quis já. Ficamos ali enquanto eu esperava a placenta sair – o que levou só uns 10 minutos e foi totalmente indolor. Daí eu me lembrei do cordão (com a placenta fora de mim, o cordão começou a me incomodar) e eu pedi: “Corta logo! Parto de Lótus, não!”. Rafael cortou então o cordão. Acho que ofereci o seio de novo, não lembro bem.
Depois de toda essa glória, chegou a polícia. Aparentemente, os vizinhos se assustaram com a gritaria e acionaram a segurança pública. Eu tinha ouvido toques de interfone e campainha durante o expulsivo, mas consegui abstrair. O Rafael ficou bem irritado. Depois de nascida Margarida, autorizei meus escudeiros a se ausentarem pra atenderem a porta. “Nasceu um bebê, todos estão bem”, explicou a doula. Eram dois. Um deles ficou meio desconfiado e pareceu querer entrar pra checar a história, mas o outro preferiu nos deixar em paz.
Por volta das 6h30, minha irmã apareceu no quarto com Emília no colo. Essa parte foi fantástica. Mesmo com a gritaria no quarto ao lado, Emília dormiu a noite inteira e acordou mais tarde que de costume. Nas últimas noites, ela vinha despertando uma ou duas vezes durante a madrugada e levantava de vez às 5h30. Foi perfeito.
Emília recebeu a irmã com um olhar de fascínio e quis mamar junto com ela. Amamentar duas ao mesmo tempo não é nada fácil; faltam braços pra ajudar na pega. O momento foi mais pra elas duas, porque Margarida ainda não tinha pegado o jeito e ficou só mesmo recebendo os carinhos da irmã.
Logo depois que Emília terminou, Margarida pegou o seio de jeito e mamou muito bem. Parece que se inspirou na irmã. Ela tinha pouco mais de meia hora de vida. Só depois ela foi pesada e medida, ali mesmo ao pé da minha cama: 3,9kg e 52,5cm. Três centímetros e 700g maior que a irmã. Impossível não se sentir poderosa depois de parir um bebê desse tamanho (tenho 1m57).
Emília recebeu o presentinho da irmã – um carrinho com uma boneca – e foi toda serelepe empurrá-lo pelo corredor. Brincou com o projeto de piscina que jazia semi-inflada na sala, enquanto o Rafael telefonava para os parentes. Depois, Rafael e a doula foram dar banho em Margarida no Tummy Tub, enquanto a parteira checava como eu estava.
Tive uma pequena laceração, que não precisou de pontos. O que protegeu meu períneo: a posição do expulsivo, de cócoras sustentada; as compressas mornas com azeite que a parteira fazia. Eu tinha feito também aqueles exercícios de Kegel e massagem no períneo durante a gestação, sem muita disciplina. Não sei se fez diferença. Em todo caso, acho que lacerou porque a gente precisou fazer Margarida sair logo e porque a mocinha era graúda. Pra quem já tinha tido uma episiotomia no parto anterior, foi uma maravilha. Incomodava um pouco, mas nada que me impedisse de sentar ou caminhar. Com dez dias de parida eu já não sentia absolutamente nada, estava perfeitamente cicatrizada. Com a episio, eu tinha ido pra casa com duas caixas de anti-inflamatório (um deles tarja preta), analgésicos e um spray chamado Aldolba (não sei o princípio ativo; preferi não saber). Desta vez, fiz apenas compressas geladas com um chá próprio para o períneo durante três dias e lavagens alternadas com iodo e chá. Fiz também um banho morno de assento com o chá pro períneo e tomei arnica homeopática. Sem drogas no leitinho das crianças.
E depois da polícia, dá-lhe mais campainha. Primeiro a diarista, que ficou impressionada com as roupas sujas de sangue e quase passou mal. Depois, o entregador de orgânicos. E mais tarde, a família. Um sábado como outro qualquer, só com um pouco mais de sangue e autoridades policiais que o normal.
Uma das coisas que costumo ler em relatos de partos domiciliares e que pude viver nesse parto foi a continuidade da vida. Não há rupturas, não há quebras. Não saímos do nosso ninho, não há grandes produções, grandes resguardos. Simplesmente o sol nasce e há mais uma criança em casa. Tomamos nosso chá, damos café da manhã ao filho mais velho, recebemos o entregador de orgânicos. Assim, como um dia qualquer.
Mas um dia perfeito.
Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam;
se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela.
Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores,
pois assim dá ele aos seus amados o sono.
Eis que os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão.
Como flechas na mão de um homem poderoso, assim são os filhos da mocidade.
Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava;
não serão confundidos, mas falarão com os seus inimigos à porta.
Salmo 127