terça-feira, 27 de maio de 2014

Alfabetização precoce: qual o problema?

Esta semana topei com um texto que muito me emocionou, do escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo. Azevedo conta suas primeiras experiências literárias, não com textos escritos, mas com imagens. Eram livros que ele encontrava na estante dos pais e folheava, bebendo daquelas imagens, sem compreender nada daquelas letras, ainda indecifráveis, que acompanhavam as ilustrações.

As imagens ficaram em suas lembranças, indeléveis. Pensando bem, talvez eu também tenha gravadas na memória muito mais lembranças visuais que verbais ou sonoras. Se tento me lembrar de uma frase, um verso de um poema, qualquer coisa textual que me tenha marcado na primeira infância, nada me vem que não tenha sido repetido muitas e muitas vezes ao longo da vida.

Cheiros, lembro também dos cheiros. O cheiro de esgoto e peixe podre que tem Fortaleza. Não tinha quatro anos completos quando saí de lá, mas guardo alguns quadros. A casa e seus espaços, as colunas redondas, as camas de alvenaria pintadas de verde. A vez em que quis tirar uma foto de dentro de um cesto de peixe, e o odor que me fez mudar de ideia assim que entrei.

As palavras, os sotaques, se foram. Talvez acabem aparecendo por aqui, ou revivendo quando trato com minhas filhas.

Ao ler o depoimento de Azevedo, pensei: "ele se lembra tão bem dessas imagens! Quantos anos será que tinha?" Não podia ser uma criança tão pequena, pra guardar uma memória tão viva. Azevedo se lembra de quando ainda não sabia ler.

Então algo estalou em mim. A partir do momento em que lemos as palavras, não lemos mais as imagens da mesma forma. Não precisamos mais adivinhar a história que as ilustrações contam. E não precisamos mais perguntar, buscar o adulto, aquele mediador que torna a leitura afetuosa. Quanto antes a criança lê sozinha, antes ela se liberta da leitura compartilhada. Bastante conveniente num tempo em que tudo o que queremos é que as crianças dispensem nossa assistência o quanto antes.

E pensei que gostaria que minhas filhas se lembrassem dos dias em que eram analfabetas. Que em seu analfabetismo, aprendam a ler as imagens. Que não as vejam apenas como decoração, mas apreendam seu potencial estético e narrativo. Que as imagens ainda emocionem. Ainda contem, ainda provoquem.


E pensei que gostaria que minhas filhas se lembrassem dos dias em que eu lia por elas. Que guardassem em suas células a música da minha voz, o calor do meu colo, o odor da minha respiração.

Elas terão toda a vida para lerem sozinhas os códigos da nossa escrita. Que, por enquanto, sejam ágrafas. E sejam todas sentidos: olhos para fotografar, ouvidos para beber o som, pele para sentir o outro, nariz para aspirar minha voz, e boca para perguntar. 

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